O jogo do amor e a razão desencantada
por Arnaldo Domínguez


Sem futuro (razão cínica)

“Quando aquele que caminha na obscuridade canta, nega sua angústia, mas nem por isso passa a ver mais claro” 

Freud
Convocaram-me para tratar do tema “As relações afetivas na atualidade” e agradeço aos integrantes do Instituto Latino-americano de Psicanálise Contemporânea por esse convite.
Talvez, suponham que eu me aprofunde sobre o assunto (tema) do amor já que disso, segundo Lacan, nós, os psicanalistas, saberemos dizer alguma coisa. Todavia, para além do amor, me referirei à cultura da violência que, conforme afirmava Jurandir Freire Costa, ainda na década de 1980, rapidamente se degenera em cultura da delinquência, como a nossa já se degenerou.
Aclaro que a minha janela privilegiada para observar o mundo é a da clínica psicanalítica. Certamente que também acompanho – dentro de minhas limitações temporais – as notícias divulgadas pela mídia. Nisso, os analisantes também colaboram comigo ao trazer tais questões. E também os alunos do Centro de Estudos Psicanalíticos (São Paulo) em um encontro muito especial que denominamos “Hora Clínica”.
E são tantas as más notícias que desembocam sempre em um desfiladeiro singular:
- Eu acho que estou em depressão! Você não acha?
A primeira exclamação dessa sentença afirma uma condição do “estar” em concordância com os parâmetros divulgados pela mídia. Depressão é!
A segunda parte, uma interrogação, vai endereçada a um Mestre que o determine numa condição irresponsável (se tenho depressão, “eu” não tenho nada a ver com isso) e medicável, transformando-o em um sujeito farmacológico, tão frequente em nossos dias dentro desta cultura que Christofer Lasch chamava “da sobrevivência e do mínimo eu”: a cultura do narcisismo.
Ao tratar desse tema, Costa escreveu: “Certos padrões de comportamento social no Brasil de hoje (1988) são suficientemente estáveis e recorrentes para que possamos afirmar a existência de uma forma particular de medo e reação ao pânico que é a cultura narcísica da violência”, na qual o futuro é negado ou invariavelmente ameaçado.
Nesta cultura da decadência social e do descrédito na justiça e na lei, há um aumento imaginário dos efeitos da Ananke e o eu deve ativar paroxisticamente os automatismos de preservação frente ao incremento da angústia da impotência que dificulta a prática da solidariedade social.
Ananke é a aliada de Eros na tarefa civilizatória que confronta o sujeito com uma tríplice vicissitude, marca do estado de impotência estrutural (hilflosigkeit): 1) A caducidade do corpo; 2) A potência esmagadora da natureza e 3) A ameaça proveniente das relações com os outros seres humanos[1].
Bauman disse que estamos de volta ao mundo darwiniano onde apenas o mais apto sobrevive. “Os outros são, em primeiro lugar e acima de tudo, competidores, tramando como qualquer competidor, cavando buracos, preparando emboscadas, torcendo para que venhamos a tropeçar e cair”. E complementa: “Confiança, compaixão e clemência são fatores suicidas (...). A vida é um jogo duro para pessoas duras (...). Cada jogador, a cada momento, está por conta própria, e para progredir (sem falar em chegar ao topo!) deve primeiro colaborar na exclusão de muitas outras pessoas ávidas por sobrevivência e sucesso que estão bloqueando o caminho, mas apenas para superar, uma por uma, todas aquelas com quem tivemos que cooperar, e abandoná-las derrotadas e inúteis[2]”.
“Amanhã, florescerá a primavera, mesmo que eu não queira”, dizia Fernando Pessoa. E isto é o que confirmam os teóricos: ninguém é indispensável.
Meu pai, que está prestes a completar 92 anos de idade e não tem nenhuma pressa para que o tempo passe, conta-me histórias de quase um século vivido. Por sorte, com algumas lacunas de memória que o protegem de transformar-se em Funes (El Memorioso de Borges[3]), mesmo que por herança materna ele também seja Funes. Tais histórias vão desde a escravidão dos rapazes nas fazendas do oeste pampiano (entre os anos 1920 e 1930) até os pormenores que ele presenciou nos bastidores de sua profissão rural na Patagônia, de onde observava os amigos capitalistas (fazendeiros) oferecerem maiores vantagens aos especialistas contratados por outros para implantar a revolução dos lucros – em franca e cínica competição, muito bem dissimulada e regada a uísque escocês – e trapacear nessa empreitada dos capitais jogados a “taba” (jogo regional que utiliza um osso bovino), que finalizaria na imposição de uma ditadura tão sangrenta. Nada novo: falsidade ideológica e espionagem industrial (ou rural), culto a John Kennedy e ao império, segregação social etc. As famigeradas veias abertas da América Latina. E nós, adolescentes, equivocados patriotas de um nacionalismo de clichês, exibíamos adesivos exortando o amor a nosso país. Este que não era nosso.
Contudo, pergunto, esse jogo sujo invadiu a alcova dos amantes ou apenas aperfeiçoou-se em instrumentos de espionagem?
Pois, na atualidade amorosa, há uma estratégia a ser desenvolvida, que vai de encontrar as senhas do Facebook ou do telefone celular – segundo uma analisante, as mulheres são hackers nisso e os homens são muito previsíveis – até contratar detetives particulares. Para quê? Para que o adversário não venha “passar a perna” na gente, uai. E isso não é bom?
Depende sempre do contexto.
Estou de acordo com aqueles que denunciam o capitalismo tardio por não ter produzido nenhum discurso sobre o amor. Isso significa que, cada vez mais, estamos aptos a escrever histórias sobre o sucesso e a superação de ordens física, empresarial, acadêmica etc., porém, cada vez menos, somos capazes de escrever histórias de amor.
Na música dita “brega”, ainda há os Alexandres Pires cantando “tô fazendo amor com outra pessoa, mas meu coração vai ser para sempre seu. O que o corpo faz a alma perdoa...”, todavia, entre o filme “As melhores intenções” (1992), que narra a história de amor e desencontro dos pais de Ingmar Bergman (roteirista, diretor e escritor sueco, educado luteranamente sob conceitos de pecado, confissão, castigo, perdão e misericórdia) e o filme Shame (2011), dirigido por Steve McQueen, mostrando a saga de um executivo sedutor que busca prazer pela internet (mas fica impotente perante a possibilidade do amor), há um percurso nem tão longo de mudança de paradigma em nossa civilização.“Também, o jogador é prisioneiro”, escreveu Borges. Prisioneiro do pior?

Os templários
“Meu conselho é que não pergunte o porquê ou o de onde, senão que desfrute do sorvete enquanto ele ainda esteja no prato. Esta é a minha filosofia”
Thornton Wilder

Ana Cruz, psicanalista, comparou as redes sociais ao Muro das Lamentações de Israel. Eu achei fantástica a comparação. Dentre tantas lamentações, lembro-me, especialmente, de uma em que alguém se queixava mais ou menos assim: “Eu me esforço muito para escrever um texto brilhante e quando o publico no Facebook, apenas três ou quatro pessoas curtem. Em contrapartida, basta que alguém publique a imagem de seu corpo brilhante e sarado para que 300 mil o curtam de imediato”. Um culto ao corpo?

Essa queixa me remeteu a um livro que passou, rapidamente, pelas minhas mãos e meus olhos na década de 1990. Ele se chamava “O Templo” e seu autor, Stephen Spencer, um inglês que conta autobiograficamente suas férias na República Germânica de Weimar nos anos 1920, admirava e invejava o corpo “sarado” desses jovens que, certamente, seguiam os conselhos do pai do Dr. Daniel Schreber. O Templo, em síntese, referia-se ao dorso nu dos jovens alemães que se exibiam em “atitude ariana”. Seguiremos nessa ritualização cada vez com maior alcance graças aos meios de comunicação contemporâneos: os que se exibem e os que dão as espiadelas voyeurísticas?
É provável que sim, tanto que até já existe uma denominação para os que se viciam nisso: Hypersexual Disorder (DSM), de acordo com a pesquisa da antropóloga Carolina Branco de Castro Ferreira, que estuda o surgimento das categorias médicas e psicológicas nessa vertente dos chamados “viciados em amor e sexo”. Os “a-dictos” sexuais se reúnem em ambulatórios ou grupos de auxílio, como o Ambulatório Integrado dos Transtornos do Impulso, do Hospital das Clínicas de São Paulo (AMITI), o Mulheres que Amam Demais Anônimas (MADA) e os já tradicionais Alcoólicos Anônimos (e entidades similares, como Neuróticos, Narcóticos, Introvertidos etc. Anônimos).
A autora diz que o AMITI surgiu para atender os casos de jogo patológico até que, certo dia, apareceu um homem viciado em ligar ao número 145 da Telesp, ou seja, viciado em bate-papo e muito endividado por conta disso. Sem entender como encaixá-lo nesse ambulatório, o médico perguntou qual seria o jogo. E o paciente lhe respondeu: “Eu jogo o jogo do amor”!
As mulheres que amam demais também estão endividadas por gastar em remédios, álcool e drogas. Segundo as entrevistadas, elas se submetem para não perder os parceiros.
Isso tudo (e muito mais) nos remete à produção teórica lacaniana com respeito à cultura: na condição capitalista atual, o sujeito procura a completude do objeto e não mais a do sentido. Entendendo essa completude como um gozo, e o gozo como a satisfação da pulsão. Nesse caso, o gozo não se realiza porque a satisfação da pulsão não existe. Entretanto, existiria, sim, aquele que triunfou e conquistou o gozo, tornando-se um completo idiota, incapaz de fazer outra coisa além de gozar, enquanto aquele que foi privado guardaria sua humanidade. Lacan está no registro de Hegel nesse Seminário III, As Psicoses, na aula 3, de 30 de novembro de 1955.
No Seminário XIV, sobre A Lógica do Fantasma, aula 15, de 12 de abril de 1967, ele disse: “O que importa ao sujeito é aquilo que tenha valor de gozo”, e aqui está baseado em Marx e a mais-valia. Na aula 16, completou esse sentido: “O sexo só tem valor pelo valor de gozo”.
O Sujeito goza do Outro: outro pensado como corpo, logo, o Sujeito só pode gozar é de seu corpo.
A partir do Seminário XX, Mais ainda, é que Lacan definiu o Gozo do UM (UM é sinônimo de Gozo). O corpo, antes despedaçado, depois do narcisismo – estado do espelho – se torna unificado. UM do corpo.
Zygmunt Bauman, por outro lado, mais recentemente, denunciou, ao definir seu conceito de “líquido”, o pouco valor que se atribui aos que vieram antes de nós, ou seja, à experiência. A organização vertical de outrora passou a ser substituída por uma experiência horizontal na atualidade. O fim do patriarcado que, após tantos “ridículos tiranos”, nos levou a ter desconfiança das autoridades. Também achamos, talvez cinicamente, que, como tudo passa (até uva passa) e já que nada dura mesmo, não temos de nos preocuparmos com laços e identidades, pois a razão é da efemeridade e da mutabilidade. Nesse sentido, a “liquidez” das relações seria uma defesa.
Então, temos, por um lado, os antigos ideais simbólicos patriarcais e, por outro, a temida “feminilização do mundo”.
Porém há quem denuncie certo “empuxo superegoico” que visa fazer existir “A Mulher” como “Uni-versal”. Uma figura (imaginária) da Mulher Total. Discurso esse centrado no Gozo Fálico, masculino, que se fecha sobre si mesmo, autoerótico, e que tende a fazer existir a Relação Sexual[4].
Algumas mulheres que alcançaram posições de comando parecem confirmar essa tendência a ocupar o lugar do Todo. Por acaso, “comemora-se” nesses dias a morte de Margareth Thatcher, a Dama de Ferro, de modo semelhante ao modo como – quiçá – se festejou (miticamente) o assassinato do pai. Assim, o Eu tornou-se objeto de amor, diz a teoria psicanalítica. Porém, por detrás desse amor, está o medo de perder o amor daquele que enuncia a lei: eis a origem do abandono. E desse modo, “amamos” os tiranos.
“Fazer o amor, não a guerra”, diz um analisante, era o lema dos anos 1960 e 1970. Atualmente, não existe mais essa distinção! O amor e a guerra andam sempre juntos e indiferenciados.
Sua afirmação me leva a refletir sobre a imposição de um novo poder fálico, masculino e universal, que resurge violento e opressor da feminilidade (a que eu vou denominar “gozo sensível”), só que agora no discurso de homens e mulheres vinculados à ideologia dos “100%” – quero dizer, da completude. 100% gay, negro, macho, fêmea, evangélico etc., algo próximo da ideologia da “raça pura”, de Louis Agassiz.  
No Brasil, neste momento, somos bombardeados pela imposição de um líder evangélico, Marco Feliciano, deputado federal pelo PSC-SP, que comanda a Comissão de Direitos Humanos e recebe a contrapartida do que ele denomina “ditadura gay”.  E são discursos especulares (de opressão).
Temos que avançar sempre quando os temas são o amor e a liberdade dos sujeitos. Na medida em que emergem os que estavam aprisionados, os que saem dos armários das opressões (bichas, negros e mulheres) – como define Caetano Veloso, “os que fazem o carnaval” –, eles e elas vão permitindo maior liberdade para todos. Mas quando emergem “vitimizados”, voltam a se tornar prisioneiros dos defensores dos direitos humanos – quem quer que esses (os defensores) sejam.
Falar de amor também é um gozo[5]. Entretanto, a cultura do amor – grego ou cortês – é o que está mais distante da nossa congregação universal do reino do capital. Todavia, a capacidade de amar e trabalhar, que é o que os analisantes nos demandam, encontra-se limitada neste tempo de culto ao objeto.
A perversão limita – e muito – o desenvolvimento de uma nova erótica.

O coração das tripas
O saber é o preço da renúncia ao gozo”

Lacan
Para que algo falte, é necessário que haja uma ordem simbólica. Mas a cena contemporânea sugere uma conotação incestuosa, “endogâmica”, diria Lévi-Strauss. Os noticiários denunciam a asfixia endogâmica de nossa conturbada civilização. Psicanalistas millerianos se referem ao declínio da metáfora paterna e apontam para uma foraclusão generalizada. “Estamos todos loucos”, diriam os velhos da minha juventude perante os excessos cometidos por aquela geração. Em meu caso particular – e de meus contemporâneos –, foi a “linha dura” ditatorial a força que nos conteve calados ou desaparecidos. O lema era “amar” ou “deixar” as nossas pátrias. Deixá-las, muitas vezes, significava ir, como Alfonsina, vestida de mar.
- Quem abrir a boca morre!
Ameaçou (defensivo) um garoto que havia me contado sobre suas atividades ilegais vinculadas aos efetivos da polícia. Eu pude lhe devolver o susto que pretendia causar em mim expressando, com cara de assustado:
- E você abriu a boca!
Isso ocorreu na virada do milênio. Mas, nos anos 1970, era uma realidade cotidiana para todos. Boca fechada! Mesmo que tivesse entrado alguma mosca. Quero dizer, esse imperativo não desapareceu com o ressurgimento da democracia. Muitos totalitarismos persistiram atomizados. E se alastraram. Por outro lado, possuímos o muro das redes sociais para escancarar nossos (re)sentimentos. Eu, pessoalmente, considero uma medida de importante repercussão e valor. Vide o caso de Julian Paul Assange e sua (nossa) Wikileaks e outros tantos mais, locais. O inconveniente é que tudo se passa com tamanha rapidez que não gera uma experiência. E se perde (no vazio?) dos excessos.
Eu não concordo totalmente com a tese do declínio da metáfora paterna. A clínica me ensina que da subjetividade da mãe é que depende a estruturação psíquica do/a filho/a. Portanto, é a mãe quem exerce (também) a função paterna. E o papel da mãe pode muito bem (também) ser exercido por um homem. Não há mais como argumentar que Deus nos fez homem e mulher, pois estamos mais do que convencidos de que ninguém nasce nem homem, nem mulher. Torna-se, aos trancos e barrancos, em nossa atualidade.
O que declinou, sim, é a representação ética da função paterna projetada nas figuras que exercem o poder e a autoridade. E todos nós conhecemos muito bem os porquês.
“Fazer das tripas coração” é um ditado popular que remete, suponho eu, a um esforço (muscular?) significativo destinado a retirar um quantum de energia das vísceras da evacuação (merda) para o sublime “cordis”, constituindo, destarte, o famigerado homem cordial de Buarque de Holanda. Processo esse que pode ser revertido a qualquer momento.
“Das tripas, coração[6]” é poesia em Adélia Prado.
Mas, no Brasil atual – embora haja quem defenda a tese de que a violência permanece a mesma de sempre, apenas aumentou o número de pessoas –, o processo reversivo se encontra por um triz. Quiçá no mundo.
Ivan Marsiglia descreve o país com o adjetivo “do autoengano” no jornal O Estado de São Paulo, de 6 de abril de 2013. Aponta para os crimes que parecem sexuais (homicídios, estupros etc.), mas que, em realidade, são a posta em ato do gozo na violência nesta sociedade cronicamente ressentida, cuja herança escravocrata é particularmente perversa. Denuncia a persistência de uma elite brasileira especialmente cruel, tal como foi descrita desde Darwin até Domenico de Masi.
Leonardo Sakamoto, jovem e instigante jornalista, descreveu em seu blog a cena de um garoto que ofereceu uma nota de R$ 100 (cem reais) a uma jovem (que ele deve ter achado atraente) na balada. Ela tentou se manter indiferente, porém, dada a insistência perturbadora, pegou a nota e a rasgou. Isso foi motivo suficiente para que o garoto reagisse com violência desmedida. Felizmente, ela também sabia se defender.
Sakamoto diz que os alunos dele – que são de uma universidade de elite – parecem viver, no mundo, em uma extensão de seu próprio videogame. Ou seja, em uma realidade virtual. Freud afirmava que os neuróticos vivem em um mundo à parte. Mas esse era o da inibição, do sintoma e da angústia.
Neste mundo, provavelmente, retornamos ao império das tripas dos tempos americanos denominados “conquista”. E o coração será o do inimigo respeitado, introjetado em um ritual antropofágico. Ou no melhor estilo de Pedrinho, “o matador”, que parou sua sanha serial depois de ter comido o coração do pai (que foi preso na mesma cela e, seguramente, não por mero acaso).


Narcinismo e tradição
“O amor é uma aposta, insensata, pela liberdade. Não a minha, a alheia[7]
Octavio Paz

Uma analisante me enviou uma “declaração de amor”, que eu chamei de “ressonância magnética” porque o que escreveu lhe retornará a partir da transferência, “lugar” no qual o analista passa a ser o analisante nisso que este último rejeita de si mesmo. Lacan afirmou que fazer o amor é poesia. Eu concordo. Porém penso que se faz o amor para além da palavra com a presença do analista, que também erotiza no sentido materno, no caso daqueles analisantes tão desprovidos de investimento narcísico. Neste particular, a outra afirmação lacaniana de que “toda declaração de amor supõe que se passe ao ato” resulta questionável. Somente se isso significa passar ao ato do amor (sem que se aguarde a reciprocidade suposta). Mais ainda, ao dizer de Lacan, fazer o amor é poesia, porém, toda declaração de amor supõe que se passe ao ato?

Declaração de amor
Sei que não me adulas,
E que nunca saberei de fato o que representas para mim.
Sei que me deste a mão e que me trataste com carinho.
Sei que me desprezaste na medida em que teu orgulho te permitira.
Sei que delicadamente me fizeste tua amiga.
Sei que já nos ofendemos no ponto certo,
E que somos arrogantes.
Sei que já sofremos juntos e
Sei que guardo-te bem dentro de mim,
no lado esquerdo.
Sei da admiração que sentimos um pelo outro e
Sei de teus textos profundíssimos
na poesia que te visita.
Sei que tu não és bolinho fácil de fritar.
Sei que rompeste com teus próprios conceitos,
Sei que arrombastes a retina de preconceituosos.
Sei que me tratas com lisura e eu também a ti e
Sei que tens aqui uma pessoa para sempre.
Sei que já tive muita raiva de ti,
E sei que sua profissão não é fácil.
Sei de tua coragem que inspira a minha.
Sei de seu humor que, quando bom, é esplendido,
quando mau, melhor ainda.
Sei que prefiro não estar contigo quando estás contrariado...
Sei de sua voz e sabes da minha.
Sei o quanto és descolado e o quanto sabes fazer a festa,
Sei que somos parecidos.
Sei pouco de ti e sabes muito de mim
Sei que isso pode parecer injusto, porém,
De amizade estamos plenos e de mais a mais
Sei que sua profissão te faz guardar segredo e
Sei que a minha... nem tanto, então...melhor assim...

Muitas interpretações surgem desse poema, todavia, o que mais me interessa agora é demonstrar como o objeto amado se confunde com o Ideal do Eu do sujeito na coincidência do objeto e da imagem fundamental. No Seminário IX, A Identificação, Lacan diz: “Eu só amo meu corpo mesmo quando este amor eu o transfiro sobre o corpo do outro”.
No Seminário I, Os escritos técnicos de Freud, Lacan havia afirmado: “O amor é um fenômeno que se passa ao nível do imaginário e que provoca uma verdadeira subdução do simbólico, uma espécie de anulação, de perturbação da função do Ideal do Eu”.
Por fim, no Seminário XXI, Le non-dupes errent, Lacan diz: “O amor é sempre recíproco porque amar é ser feito enamorado”. Entretanto, o supremamente amável é o Pai (simbólico) – Seminário XVII, O avesso da psicanálise. Devotamos-lhe amor eterno na medida em que ele é o portador da castração.
Dias passados, ouvi (novamente) uma canção de Leonardo Fabio, artista da minha adolescência que se tornou um grande cineasta argentino. Nessa melodia, Fabio pedia, depois de alguns encontros, um beijo à moça que conhecera na rua, e ela recusava. Não se entendiam bem no amor. Quando ela queria Vivaldi, ele preferia Beatles. Ou, então, ao dizer de Caetano, em “Bruta Flor”, “onde queres revólver, sou coqueiro...”. Na verdade, ambos mantêm a ilusão da possibilidade da “rapport sexuel”.
“Não existe relação sexual no ser falante”, afirmou Lacan no Seminário XVIII, De um discurso que não seja do semblante. “A relação sexual, como qualquer outra relação, em última análise, subsiste apenas da escrita”. Il n’y a pas de rapport sexuel. A mais bem sucedida proposição é a escritura matemática na qual toda ambiguidade é eliminada. A analogia (igualdade entre razões) é impossível, a não ser no gozo fálico em que a perversão nunca está muito longe quando tenta reduzir “A” a “a”.
Então, cantou Martinho da Vila: “Faça de tudo o que tem que fazer, pro amor render, mexe gostoso o que tem que mexer, pro amor render”.
Bem, é isto: as pessoas transam e gozam de seus corpos.
Mas quando ele afirma que “é gostoso ser teu nego”, pronuncia a palavra final da demanda: ter um Outro para “si”, isso é o amor. Eu te amo mesmo se tu não quiseres.
Para Freud – e para tantos –, a perversão corresponde a condutas sexuais diferentes das da finalidade da procriação.
Lacan reafirma que a perversão é inerente à sexualidade. No Seminário IV, As relações do objeto, aborda a relação com o Falo e a Identificação com ele.
O fetichista se identifica com o Falo como objeto imaginário que completa o desejo materno, diz. Primeiro tempo do Édipo (Seminário V, As formações do inconsciente), Ser ou não Ser, 1957-58.
No Seminário X, A angústia, o Falo é apresentado como o significante do desejo cuja causa é o objeto “a minúsculo” (por detrás do desejo, empurrando para produzi-lo). Ali, muda o estatuto do fetiche, que passa de ser o Falo (Seminário V) a ser o objeto causa do desejo (Seminário X).
No Seminário XVI, De um outro ao Outro, Lacan eleva a perversão ao grau de Estrutura. Posição do sujeito perverso identificado com o objeto “a minúsculo” para servir, de tal modo, como instrumento do Gozo do Outro. O perverso se dedica a tamponar o buraco do Outro, portanto, é partidário de que o Outro exista. Um defensor da fé, diria Lacan, um singular auxiliar de Deus, um Crente do Outro e, sobretudo, do Gozo do Outro. Um “cruzado”, para quem lei e desejo representam a mesma coisa. E é através da voz que o Outro pode se introduzir, tirando-lhe a palavra e impondo-lhe uma voz, como faz o sádico, ou se tornando seu defensor, como faz o masoquista. Assim, impõe-se a lei moral.
Quero sustentar aqui que nós, os analistas, adquirimos e transmitimos, a partir das análises, uma capacidade mais forte e mais intensa de amar.




[1] “Narcisismo em tempos sombrios” em “Tempo do Desejo – Sociologia e Psicanálise” (Editora Brasiliense), de Jurandir Freire Costa.
[2] Em “Amor Líquido – Sobre a fragilidade dos laços humanos” (Editora Zahar), de Zygmunt Bauman.
[3] “Funes no sólo recordaba cada hoja de cada árbol de cada monte, sino cada una de las veces que la había percibido o imaginado. Resolvió reducir cada una de sus jornadas pretéritas a unos setenta mil recuerdos, que definiría luego por cifras. Lo disuadieron dos consideraciones: la conciencia de que la tarea era interminable, la conciencia de que era inútil. Pensó que en la hora de la muerte no habría acabado aún de clasificar todos los recuerdos de la niñez”, em Funes, El Memorioso, de Jorge Luis Borges (1944).
[4] Em “O amor e o feminino no século XXI”, de Anícia Ewerton; Opção Lacaniana on line – Ano 4 – Número 10 – Março de 2013.
[5] Capítulo “Amor”, em “Dicionário de Psicanálise – Freud & Lacan” (Editora Ágalma), de Pierre-Henri Castel.
[6] “Das tripas, coração – Adélia Prado, inspirada, poetizou um dito popular. Encantou-se com palavras, uma expressão que faz sentido à vida. Ser capaz de transformar as vísceras em expressões de amor. Isso é coisa de quem sabe o que é poesia, de quem fotografa jardins com olhos da alma quando tudo é sequidão ou, ainda, de quem consegue pintar a beleza diante do caos quando, nas entranhas do próprio ser, as cores já se tenham desbotado ou se perdido no fim de um dia soturno”, diz Antônio Pompéia sobre o poema (antoniopompeia.blogspot.com.br).
[7] Em “Amor, metáfora eterna” (Editora Bluecom), de Claudio Montoto.

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