O jogo do amor e a razão desencantada
por Arnaldo Domínguez
Sem futuro (razão
cínica)
“Quando
aquele que caminha na obscuridade canta, nega sua angústia, mas nem por isso
passa a ver mais claro”
– Freud
Convocaram-me para tratar do tema “As relações
afetivas na atualidade” e agradeço aos integrantes do Instituto Latino-americano
de Psicanálise Contemporânea por esse convite.
Talvez, suponham que eu me aprofunde sobre o assunto
(tema) do amor já que disso, segundo Lacan, nós, os psicanalistas, saberemos
dizer alguma coisa. Todavia, para além do amor, me referirei à cultura da
violência que, conforme afirmava Jurandir Freire Costa, ainda na década de 1980,
rapidamente se degenera em cultura da delinquência, como a nossa já se degenerou.
Aclaro que a minha janela privilegiada para observar
o mundo é a da clínica psicanalítica. Certamente que também acompanho – dentro
de minhas limitações temporais – as notícias divulgadas pela mídia. Nisso, os
analisantes também colaboram comigo ao trazer tais questões. E também os alunos
do Centro de Estudos Psicanalíticos (São Paulo) em um encontro muito especial
que denominamos “Hora Clínica”.
E são tantas as más notícias que desembocam sempre em
um desfiladeiro singular:
- Eu acho que estou em depressão! Você não acha?
A primeira exclamação dessa sentença afirma uma
condição do “estar” em concordância com os parâmetros divulgados pela mídia.
Depressão é!
A segunda parte, uma interrogação, vai endereçada a
um Mestre que o determine numa condição irresponsável (se tenho depressão, “eu”
não tenho nada a ver com isso) e medicável, transformando-o em um sujeito
farmacológico, tão frequente em nossos dias dentro desta cultura que Christofer
Lasch chamava “da sobrevivência e do mínimo eu”: a cultura do narcisismo.
Ao tratar desse tema, Costa escreveu: “Certos
padrões de comportamento social no Brasil de hoje (1988) são suficientemente
estáveis e recorrentes para que possamos afirmar a existência de uma forma
particular de medo e reação ao pânico que é a cultura narcísica da violência”, na qual o futuro é negado ou
invariavelmente ameaçado.
Nesta cultura da decadência social e do descrédito
na justiça e na lei, há um aumento imaginário dos efeitos da Ananke e o eu deve
ativar paroxisticamente os automatismos de preservação frente ao incremento da
angústia da impotência que dificulta a prática da solidariedade social.
Ananke é a aliada de Eros na tarefa civilizatória
que confronta o sujeito com uma tríplice vicissitude, marca do estado de
impotência estrutural (hilflosigkeit): 1) A caducidade do corpo; 2) A potência
esmagadora da natureza e 3) A ameaça proveniente das relações com os outros
seres humanos[1].
Bauman disse que estamos de volta ao mundo
darwiniano onde apenas o mais apto sobrevive. “Os outros são, em primeiro lugar
e acima de tudo, competidores, tramando como qualquer competidor, cavando
buracos, preparando emboscadas, torcendo para que venhamos a tropeçar e cair”.
E complementa: “Confiança, compaixão e clemência são fatores suicidas (...). A
vida é um jogo duro para pessoas duras (...). Cada jogador, a cada momento,
está por conta própria, e para progredir (sem falar em chegar ao topo!) deve
primeiro colaborar na exclusão de muitas outras pessoas ávidas por
sobrevivência e sucesso que estão bloqueando o caminho, mas apenas para
superar, uma por uma, todas aquelas com quem tivemos que cooperar, e
abandoná-las derrotadas e inúteis[2]”.
“Amanhã, florescerá a primavera, mesmo que eu não
queira”, dizia Fernando Pessoa. E isto é o que confirmam os teóricos: ninguém é
indispensável.
Meu pai, que está prestes a completar 92 anos de
idade e não tem nenhuma pressa para que o tempo passe, conta-me histórias de
quase um século vivido. Por sorte, com algumas lacunas de memória que o
protegem de transformar-se em Funes (El Memorioso de Borges[3]), mesmo
que por herança materna ele também seja Funes. Tais histórias vão desde a
escravidão dos rapazes nas fazendas do oeste pampiano (entre os anos 1920 e 1930)
até os pormenores que ele presenciou nos bastidores de sua profissão rural na
Patagônia, de onde observava os amigos capitalistas (fazendeiros) oferecerem
maiores vantagens aos especialistas contratados por outros para implantar a
revolução dos lucros – em franca e cínica competição, muito bem dissimulada e
regada a uísque escocês – e trapacear nessa empreitada dos capitais jogados a
“taba” (jogo regional que utiliza um osso bovino), que finalizaria na imposição
de uma ditadura tão sangrenta. Nada novo: falsidade ideológica e espionagem
industrial (ou rural), culto a John Kennedy e ao império, segregação social etc.
As famigeradas veias abertas da América Latina. E nós, adolescentes,
equivocados patriotas de um nacionalismo de clichês, exibíamos adesivos
exortando o amor a nosso país. Este
que não era nosso.
Contudo, pergunto, esse jogo sujo invadiu a alcova
dos amantes ou apenas aperfeiçoou-se em instrumentos de espionagem?
Pois, na atualidade amorosa, há uma estratégia a ser
desenvolvida, que vai de encontrar as senhas do Facebook ou do telefone celular
– segundo uma analisante, as mulheres são hackers nisso e os homens são muito
previsíveis – até contratar detetives particulares. Para quê? Para que o
adversário não venha “passar a perna” na gente, uai. E isso não é bom?
Depende sempre do contexto.
Estou de acordo com aqueles que denunciam o
capitalismo tardio por não ter produzido nenhum discurso sobre o amor. Isso significa
que, cada vez mais, estamos aptos a escrever histórias sobre o sucesso e a
superação de ordens física, empresarial, acadêmica etc., porém, cada vez menos,
somos capazes de escrever histórias de amor.
Na música dita “brega”, ainda há os Alexandres Pires
cantando “tô fazendo amor com outra pessoa, mas meu coração vai ser para sempre
seu. O que o corpo faz a alma perdoa...”, todavia, entre o filme “As melhores
intenções” (1992), que narra a história de amor e desencontro dos pais de
Ingmar Bergman (roteirista, diretor e escritor sueco, educado luteranamente sob
conceitos de pecado, confissão, castigo, perdão e misericórdia) e o filme Shame
(2011), dirigido por Steve McQueen, mostrando a saga de um executivo sedutor
que busca prazer pela internet (mas fica impotente perante a possibilidade do
amor), há um percurso nem tão longo de mudança de paradigma em nossa
civilização.“Também, o jogador é prisioneiro”, escreveu Borges. Prisioneiro do
pior?
Os
templários
“Meu conselho é que não pergunte o
porquê ou o de onde, senão que desfrute do sorvete enquanto ele ainda esteja no
prato. Esta é a minha filosofia”
– Thornton Wilder
Ana
Cruz, psicanalista, comparou as redes sociais ao Muro das Lamentações de
Israel. Eu achei fantástica a comparação. Dentre tantas lamentações, lembro-me,
especialmente, de uma em que alguém se queixava mais ou menos assim: “Eu me
esforço muito para escrever um texto brilhante e quando o publico no Facebook,
apenas três ou quatro pessoas curtem. Em contrapartida, basta que alguém
publique a imagem de seu corpo brilhante e sarado para que 300 mil o curtam de
imediato”. Um culto ao corpo?
Essa
queixa me remeteu a um livro que passou, rapidamente, pelas minhas mãos e meus
olhos na década de 1990. Ele se chamava “O Templo” e seu autor, Stephen
Spencer, um inglês que conta autobiograficamente suas férias na República
Germânica de Weimar nos anos 1920, admirava e invejava o corpo “sarado” desses
jovens que, certamente, seguiam os conselhos do pai do Dr. Daniel Schreber. O
Templo, em síntese, referia-se ao dorso nu dos jovens alemães que se exibiam em
“atitude ariana”. Seguiremos nessa ritualização cada vez com maior alcance
graças aos meios de comunicação contemporâneos: os que se exibem e os que dão
as espiadelas voyeurísticas?
É provável que sim, tanto que até já existe uma
denominação para os que se viciam nisso: Hypersexual Disorder (DSM), de acordo
com a pesquisa da antropóloga Carolina Branco de Castro Ferreira, que estuda o
surgimento das categorias médicas e psicológicas nessa vertente dos chamados
“viciados em amor e sexo”. Os “a-dictos” sexuais se reúnem em ambulatórios ou
grupos de auxílio, como o Ambulatório Integrado dos Transtornos do Impulso, do
Hospital das Clínicas de São Paulo (AMITI), o Mulheres que Amam Demais Anônimas
(MADA) e os já tradicionais Alcoólicos Anônimos (e entidades similares, como
Neuróticos, Narcóticos, Introvertidos etc. Anônimos).
A autora diz que o AMITI surgiu para atender os
casos de jogo patológico até que, certo dia, apareceu um homem viciado em ligar
ao número 145 da Telesp, ou seja, viciado em bate-papo e muito endividado por
conta disso. Sem entender como encaixá-lo nesse ambulatório, o médico perguntou
qual seria o jogo. E o paciente lhe respondeu: “Eu jogo o jogo do amor”!
As mulheres que amam demais também estão endividadas
por gastar em remédios, álcool e drogas. Segundo as entrevistadas, elas se
submetem para não perder os parceiros.
Isso tudo (e muito mais) nos remete à produção
teórica lacaniana com respeito à cultura: na condição capitalista atual, o
sujeito procura a completude do objeto e não mais a do sentido. Entendendo essa
completude como um gozo, e o gozo como a satisfação da pulsão. Nesse caso, o
gozo não se realiza porque a satisfação da pulsão não existe. Entretanto,
existiria, sim, aquele que triunfou e conquistou o gozo, tornando-se um
completo idiota, incapaz de fazer outra coisa além de gozar, enquanto aquele
que foi privado guardaria sua humanidade. Lacan está no registro de Hegel nesse
Seminário III, As Psicoses, na aula 3,
de 30 de novembro de 1955.
No Seminário XIV, sobre A Lógica do Fantasma, aula 15, de 12 de abril de 1967, ele disse:
“O que importa ao sujeito é aquilo que tenha valor de gozo”, e aqui está baseado
em Marx e a mais-valia. Na aula 16, completou esse sentido: “O sexo só tem
valor pelo valor de gozo”.
O Sujeito goza do Outro: outro pensado como corpo,
logo, o Sujeito só pode gozar é de seu corpo.
A partir do Seminário XX, Mais ainda, é que Lacan definiu o Gozo do UM (UM é sinônimo de
Gozo). O corpo, antes despedaçado, depois do narcisismo – estado do espelho –
se torna unificado. UM do corpo.
Zygmunt Bauman, por outro lado, mais recentemente, denunciou,
ao definir seu conceito de “líquido”, o pouco valor que se atribui aos que
vieram antes de nós, ou seja, à experiência. A organização vertical de outrora
passou a ser substituída por uma experiência horizontal na atualidade. O fim do
patriarcado que, após tantos “ridículos tiranos”, nos levou a ter desconfiança das
autoridades. Também achamos, talvez cinicamente, que, como tudo passa (até uva
passa) e já que nada dura mesmo, não temos de nos preocuparmos com laços e
identidades, pois a razão é da efemeridade e da mutabilidade. Nesse sentido, a
“liquidez” das relações seria uma defesa.
Então, temos, por um lado, os antigos ideais
simbólicos patriarcais e, por outro, a temida “feminilização do mundo”.
Porém há quem denuncie certo “empuxo superegoico”
que visa fazer existir “A Mulher” como “Uni-versal”. Uma figura (imaginária) da
Mulher Total. Discurso esse centrado no Gozo Fálico, masculino, que se fecha
sobre si mesmo, autoerótico, e que tende a fazer existir a Relação Sexual[4].
Algumas mulheres que alcançaram posições de comando
parecem confirmar essa tendência a ocupar o lugar do Todo. Por acaso,
“comemora-se” nesses dias a morte de Margareth Thatcher, a Dama de Ferro, de
modo semelhante ao modo como – quiçá – se festejou (miticamente) o assassinato
do pai. Assim, o Eu tornou-se objeto de amor, diz a teoria psicanalítica.
Porém, por detrás desse amor, está o medo de perder o amor daquele que enuncia
a lei: eis a origem do abandono. E desse modo, “amamos” os tiranos.
“Fazer o amor, não a guerra”, diz um analisante, era
o lema dos anos 1960 e 1970. Atualmente, não existe mais essa distinção! O amor
e a guerra andam sempre juntos e indiferenciados.
Sua afirmação me leva a refletir sobre a imposição
de um novo poder fálico, masculino e universal, que resurge violento e opressor
da feminilidade (a que eu vou denominar “gozo sensível”), só que agora no
discurso de homens e mulheres vinculados à ideologia dos “100%” – quero dizer,
da completude. 100% gay, negro, macho, fêmea, evangélico etc., algo próximo da
ideologia da “raça pura”, de Louis Agassiz.
No Brasil, neste momento, somos bombardeados pela imposição
de um líder evangélico, Marco Feliciano, deputado federal pelo PSC-SP, que
comanda a Comissão de Direitos Humanos e recebe a contrapartida do que ele
denomina “ditadura gay”. E são discursos
especulares (de opressão).
Temos que avançar sempre quando os temas são o amor
e a liberdade dos sujeitos. Na medida em que emergem os que estavam
aprisionados, os que saem dos armários das opressões (bichas, negros e mulheres)
– como define Caetano Veloso, “os que fazem o carnaval” –, eles e elas vão
permitindo maior liberdade para todos. Mas quando emergem “vitimizados”, voltam
a se tornar prisioneiros dos defensores dos direitos humanos – quem quer que
esses (os defensores) sejam.
Falar de amor também é um gozo[5].
Entretanto, a cultura do amor – grego ou cortês – é o que está mais distante da
nossa congregação universal do reino do capital. Todavia, a capacidade de amar
e trabalhar, que é o que os analisantes nos demandam, encontra-se limitada neste
tempo de culto ao objeto.
A perversão limita – e muito – o desenvolvimento de
uma nova erótica.
O
coração das tripas
“O
saber é o preço da renúncia ao gozo”
– Lacan
Para que algo falte, é necessário que haja uma ordem
simbólica. Mas a cena contemporânea sugere uma conotação incestuosa,
“endogâmica”, diria Lévi-Strauss. Os noticiários denunciam a asfixia endogâmica
de nossa conturbada civilização. Psicanalistas millerianos se referem ao
declínio da metáfora paterna e apontam para uma foraclusão generalizada.
“Estamos todos loucos”, diriam os velhos da minha juventude perante os excessos
cometidos por aquela geração. Em meu caso particular – e de meus contemporâneos
–, foi a “linha dura” ditatorial a força que nos conteve calados ou
desaparecidos. O lema era “amar” ou “deixar” as nossas pátrias. Deixá-las,
muitas vezes, significava ir, como Alfonsina, vestida de mar.
- Quem abrir a boca morre!
Ameaçou (defensivo) um garoto que havia me contado
sobre suas atividades ilegais vinculadas aos efetivos da polícia. Eu pude lhe
devolver o susto que pretendia causar em mim expressando, com cara de
assustado:
- E você abriu a boca!
Isso ocorreu na virada do milênio. Mas, nos anos
1970, era uma realidade cotidiana para todos. Boca fechada! Mesmo que tivesse
entrado alguma mosca. Quero dizer, esse imperativo não desapareceu com o
ressurgimento da democracia. Muitos totalitarismos persistiram atomizados. E se
alastraram. Por outro lado, possuímos o muro das redes sociais para escancarar
nossos (re)sentimentos. Eu, pessoalmente, considero uma medida de importante repercussão
e valor. Vide o caso de Julian Paul Assange e sua (nossa) Wikileaks e outros
tantos mais, locais. O inconveniente é que tudo se passa com tamanha rapidez
que não gera uma experiência. E se perde (no vazio?) dos excessos.
Eu não concordo totalmente com a tese do declínio da
metáfora paterna. A clínica me ensina que da subjetividade da mãe é que depende
a estruturação psíquica do/a filho/a. Portanto, é a mãe quem exerce (também) a
função paterna. E o papel da mãe pode muito bem (também) ser exercido por um
homem. Não há mais como argumentar que Deus nos fez homem e mulher, pois
estamos mais do que convencidos de que ninguém nasce nem homem, nem mulher.
Torna-se, aos trancos e barrancos, em nossa atualidade.
O que declinou, sim, é a representação ética da
função paterna projetada nas figuras que exercem o poder e a autoridade. E
todos nós conhecemos muito bem os porquês.
“Fazer das tripas coração” é um ditado popular que
remete, suponho eu, a um esforço (muscular?) significativo destinado a retirar
um quantum de energia das vísceras da evacuação (merda) para o sublime “cordis”,
constituindo, destarte, o famigerado homem cordial de Buarque de Holanda.
Processo esse que pode ser revertido a qualquer momento.
“Das tripas, coração[6]” é
poesia em Adélia Prado.
Mas, no Brasil atual – embora haja quem defenda a
tese de que a violência permanece a mesma de sempre, apenas aumentou o número
de pessoas –, o processo reversivo se encontra por um triz. Quiçá no mundo.
Ivan Marsiglia descreve o país com o adjetivo “do
autoengano” no jornal O Estado de São Paulo, de 6 de abril de 2013. Aponta para
os crimes que parecem sexuais (homicídios, estupros etc.), mas que, em
realidade, são a posta em ato do gozo na violência nesta sociedade cronicamente
ressentida, cuja herança escravocrata é particularmente perversa. Denuncia a
persistência de uma elite brasileira especialmente cruel, tal como foi descrita
desde Darwin até Domenico de Masi.
Leonardo Sakamoto, jovem e instigante jornalista,
descreveu em seu blog a cena de um garoto que ofereceu uma nota de R$ 100 (cem
reais) a uma jovem (que ele deve ter achado atraente) na balada. Ela tentou se
manter indiferente, porém, dada a insistência perturbadora, pegou a nota e a
rasgou. Isso foi motivo suficiente para que o garoto reagisse com violência
desmedida. Felizmente, ela também sabia se defender.
Sakamoto diz que os alunos dele – que são de uma
universidade de elite – parecem viver, no mundo, em uma extensão de seu próprio
videogame. Ou seja, em uma realidade virtual. Freud afirmava que os neuróticos
vivem em um mundo à parte. Mas esse era o da inibição, do sintoma e da
angústia.
Neste mundo, provavelmente, retornamos ao império
das tripas dos tempos americanos denominados “conquista”. E o coração será o do
inimigo respeitado, introjetado em um ritual antropofágico. Ou no melhor estilo
de Pedrinho, “o matador”, que parou sua sanha serial depois de ter comido o
coração do pai (que foi preso na mesma cela e, seguramente, não por mero
acaso).
Narcinismo
e tradição
“O amor é uma aposta, insensata, pela liberdade.
Não a minha, a alheia[7]”
– Octavio Paz
Uma analisante me enviou uma “declaração
de amor”, que eu chamei de “ressonância magnética” porque o que escreveu lhe
retornará a partir da transferência, “lugar” no qual o analista passa a ser o
analisante nisso que este último rejeita de si mesmo. Lacan afirmou que fazer o
amor é poesia. Eu concordo. Porém penso que se faz o amor para além da palavra
com a presença do analista, que também erotiza no sentido materno, no caso daqueles
analisantes tão desprovidos de investimento narcísico. Neste particular, a
outra afirmação lacaniana de que “toda declaração de amor supõe que se passe ao
ato” resulta questionável. Somente se isso significa passar ao ato do amor (sem
que se aguarde a reciprocidade suposta). Mais ainda, ao dizer de Lacan, fazer o
amor é poesia, porém, toda declaração de amor supõe que se passe ao ato?
Declaração de amor
Sei que não me
adulas,
E que nunca
saberei de fato o que representas para mim.
Sei que me deste
a mão e que me trataste com carinho.
Sei que me
desprezaste na medida em que teu orgulho te permitira.
Sei que
delicadamente me fizeste tua amiga.
Sei que já nos
ofendemos no ponto certo,
E que somos
arrogantes.
Sei que já
sofremos juntos e
Sei que
guardo-te bem dentro de mim,
no lado
esquerdo.
Sei da admiração
que sentimos um pelo outro e
Sei de teus
textos profundíssimos
na poesia que te
visita.
Sei que tu não
és bolinho fácil de fritar.
Sei que rompeste
com teus próprios conceitos,
Sei que
arrombastes a retina de preconceituosos.
Sei que me
tratas com lisura e eu também a ti e
Sei que tens
aqui uma pessoa para sempre.
Sei que já tive
muita raiva de ti,
E sei que sua
profissão não é fácil.
Sei de tua
coragem que inspira a minha.
Sei de seu humor
que, quando bom, é esplendido,
quando mau,
melhor ainda.
Sei que prefiro
não estar contigo quando estás contrariado...
Sei de sua voz e
sabes da minha.
Sei o quanto és
descolado e o quanto sabes fazer a festa,
Sei que somos
parecidos.
Sei pouco de ti
e sabes muito de mim
Sei que isso
pode parecer injusto, porém,
De amizade
estamos plenos e de mais a mais
Sei que sua
profissão te faz guardar segredo e
Sei que a
minha... nem tanto, então...melhor assim...
Muitas
interpretações surgem desse poema, todavia, o que mais me interessa agora é
demonstrar como o objeto amado se confunde com o Ideal do Eu do sujeito na
coincidência do objeto e da imagem fundamental. No Seminário IX, A Identificação, Lacan diz: “Eu só amo
meu corpo mesmo quando este amor eu o transfiro sobre o corpo do outro”.
No Seminário I, Os
escritos técnicos de Freud, Lacan havia afirmado: “O amor é um fenômeno que se passa ao nível do imaginário e que
provoca uma verdadeira subdução do simbólico, uma espécie de anulação, de
perturbação da função do Ideal do Eu”.
Por fim, no Seminário XXI, Le non-dupes errent, Lacan diz: “O amor é sempre recíproco porque
amar é ser feito enamorado”. Entretanto,
o supremamente amável é o Pai (simbólico) – Seminário XVII, O avesso da psicanálise. Devotamos-lhe
amor eterno na medida em que ele é o portador da castração.
Dias passados, ouvi (novamente) uma canção de
Leonardo Fabio, artista da minha adolescência que se tornou um grande cineasta
argentino. Nessa melodia, Fabio pedia, depois de alguns encontros, um beijo à
moça que conhecera na rua, e ela recusava. Não se entendiam bem no amor. Quando
ela queria Vivaldi, ele preferia Beatles. Ou, então, ao dizer de Caetano, em “Bruta
Flor”, “onde queres revólver, sou coqueiro...”. Na verdade, ambos mantêm a
ilusão da possibilidade da “rapport sexuel”.
“Não existe relação sexual no ser falante”, afirmou
Lacan no Seminário XVIII, De um discurso
que não seja do semblante. “A relação sexual, como qualquer outra relação,
em última análise, subsiste apenas da escrita”. Il n’y a pas de rapport sexuel. A mais bem sucedida proposição é a
escritura matemática na qual toda ambiguidade é eliminada. A analogia
(igualdade entre razões) é impossível, a não ser no gozo fálico em que a
perversão nunca está muito longe quando tenta reduzir “A” a “a”.
Então, cantou Martinho da Vila: “Faça de tudo o que tem que fazer, pro amor render, mexe gostoso o
que tem que mexer, pro amor render”.
Bem, é isto: as pessoas transam e gozam de seus
corpos.
Mas quando ele afirma que “é gostoso ser teu nego”, pronuncia
a palavra final da demanda: ter um Outro para “si”, isso é o amor. Eu te amo
mesmo se tu não quiseres.
Para Freud – e para tantos –, a perversão
corresponde a condutas sexuais diferentes das da finalidade da procriação.
Lacan reafirma que a perversão é inerente à
sexualidade. No Seminário IV, As relações
do objeto, aborda a relação com o Falo e a Identificação com ele.
O fetichista se identifica com o Falo como objeto
imaginário que completa o desejo materno, diz. Primeiro tempo do Édipo
(Seminário V, As formações do
inconsciente), Ser ou não Ser, 1957-58.
No Seminário X, A
angústia, o Falo é apresentado como o significante do desejo cuja causa é o
objeto “a minúsculo” (por detrás do desejo, empurrando para produzi-lo). Ali,
muda o estatuto do fetiche, que passa de ser o Falo (Seminário V) a ser o
objeto causa do desejo (Seminário X).
No Seminário XVI, De um outro ao Outro, Lacan eleva a perversão ao grau de Estrutura.
Posição do sujeito perverso identificado com o objeto “a minúsculo” para
servir, de tal modo, como instrumento do Gozo do Outro. O perverso se dedica a
tamponar o buraco do Outro, portanto, é partidário de que o Outro exista. Um
defensor da fé, diria Lacan, um singular auxiliar de Deus, um Crente do Outro e,
sobretudo, do Gozo do Outro. Um “cruzado”, para quem lei e desejo representam a
mesma coisa. E é através da voz que o Outro pode se introduzir, tirando-lhe a
palavra e impondo-lhe uma voz, como faz o sádico, ou se tornando seu defensor,
como faz o masoquista. Assim, impõe-se a lei moral.
Quero sustentar aqui que nós, os analistas,
adquirimos e transmitimos, a partir das análises, uma capacidade mais forte e
mais intensa de amar.
[1] “Narcisismo
em tempos sombrios” em “Tempo do Desejo – Sociologia e Psicanálise” (Editora
Brasiliense), de Jurandir Freire Costa.
[2] Em
“Amor Líquido – Sobre a fragilidade dos laços humanos” (Editora Zahar), de
Zygmunt Bauman.
[3] “Funes
no sólo recordaba cada hoja de cada árbol de cada monte, sino cada una de las
veces que la había percibido o imaginado. Resolvió reducir cada una de sus
jornadas pretéritas a unos setenta mil recuerdos, que definiría luego por
cifras. Lo disuadieron dos consideraciones: la conciencia de que la tarea era
interminable, la conciencia de que era inútil. Pensó que en la hora de la
muerte no habría acabado aún de clasificar todos los recuerdos de la niñez”, em
Funes, El Memorioso, de Jorge Luis Borges (1944).
[4] Em
“O amor e o feminino no século XXI”, de Anícia Ewerton; Opção Lacaniana on line
– Ano 4 – Número 10 – Março de 2013.
[5] Capítulo
“Amor”, em “Dicionário de Psicanálise – Freud & Lacan” (Editora Ágalma), de
Pierre-Henri Castel.
[6] “Das
tripas, coração – Adélia Prado, inspirada, poetizou um dito popular. Encantou-se
com palavras, uma expressão que faz sentido à vida. Ser capaz de transformar as
vísceras em expressões de amor. Isso é coisa de quem sabe o que é poesia, de
quem fotografa jardins com olhos da alma quando tudo é sequidão ou, ainda, de
quem consegue pintar a beleza diante do caos quando, nas entranhas do próprio
ser, as cores já se tenham desbotado ou se perdido no fim de um dia soturno”,
diz Antônio Pompéia sobre o poema (antoniopompeia.blogspot.com.br).
[7] Em
“Amor, metáfora eterna” (Editora Bluecom), de Claudio Montoto.
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