O SILÊNCIO DOS ANALISTAS...

“Deus nos livre dos médicos amigos em geral, e dos médicos bolcheviques em particular! Experimentar em si mesmo a invenção de um médico bolchevique é horrível!”
(Carta de Lenine para Gorki, no outono de 1913)1

COMBATER? A VIOLÊNCIA?

Muitos são os médicos que se afastam do hospital ou consultório para dedicar-se à política partidária. Existe até um Manual de orientações legais e éticas dirigido aos médicos candidatos. Sobre tudo porque muitos realizam consultas gratuitas em suas próprias residências, distribuem amostras grátis de medicamentos e facilitam a realização de cirurgias com a finalidade de auferir dividendos políticos, aproveitando-se da fragilidade do eleitor necessitado de atendimento.2 Já, os psicanalistas são frequentemente acusados de indiferença nesta área. Freud, ao contrário, escreveu “Moisés e o Monoteísmo” em plena ascensão do nacional-socialismo germânico sem jamais escamotear sua condição judaica, mesmo não sendo um sionista. Essa escrita representou sua posição política.

Em 2005 tive a gratificação de conhecer pessoalmente a Michel Plon, no Instituto de Psicologia da USP, por ocasião da apresentação de seu texto “Da atualidade do discurso freudiano sobre a guerra”. Plon dizia que “a guerra é um elemento incontornável da condição humana” mas que, a grande maioria dos analistas rejeita a proposta de falar disso a partir da psicanálise, em tal caso, “aplicada”. Há, em conseqüência, um silêncio dos analistas em relação às turbulências que atravessam o mundo e a sociedade. E a mínima manifestação séria sobre este assunto, faz surgir o interdito e o opróbrio, o que, em outras palavras, diz respeito à degradação extrema.

Muito cedo surgiram, na história da psicanálise, as psico biografias, pato grafias, etc., que propiciaram o ensejo para que Freud, ele próprio propusesse uma “volta à Freud”. Os que não voltaram costumam estampar na mídia uma selvageria interpretativa atolada no imaginário. Nessa época do encontro com Michel Plon havia os que comparavam as Torres Gêmeas às pernas abertas de uma mulher estuprada pelos fundamentalistas do terror, os que não concebem, à mulher, um estatuto muito privilegiado.

Já, outros, organizando-se ao redor do conceito lacaniano de “gozo”, constroem uma espécie de “antropologia psicanalítica”, uma tomada de posição silenciosa numa ordem política e moral a partir da desordem em que estão mergulhados “os demais”. Plon os acusa de “belas almas”.3

De acordo com a tese de Deleuze, somente a violência põe o pensamento em ação.4

A violência de um signo força à procura de seu sentido, provoca, perturba o intérprete, força-o a buscar a verdade. Procurar a verdad e é interpretar e a interpretação é um convite à reflexão. A interpretação do analista "é um trabalho intelectual" dizia Freud na primeira concepção, "é concebida como produtora do deslocamento da catexia libidinal" (segunda concepção) e põe em jogo o automatismo da repetição e o sistema de identificação (terceira)."Os analistas uilizam o princípio autoritário dos educadores de sempre" - teoria flogística mística - diz Lacan. Mas, que tipologia será esta que utilizamos ao dizer "os analistas"?

Para Weber não existe um "mundo objetivo". A objetividade do social só pode ser aprendida através das ações individuais (na contra-partida do pensamento durkheimiano). É preciso construir uma tipologia da ação: o capitalista, o sacerdote, o profeta, o político, o cientista, para que se possa compreender as objetivações tais como: capitalismo, religião, política e ciência. Weber propõe uma compreensão subjetiva da sociologia. A Ação é o núcleo da significação do mundo. Posteriormente, a sociologia de Bourdieu introduziu, junto às relações de interação, a questão do PODER.

Objetivamente, transformamos esses "tipos" em "Senhor" diz Zizek - "O mais sublime dos histéricos" - e que tal transformação revela o nosso "paradoxo": "A hipótese do Senhor é uma saída possível que nos permite salvar o desejo. "Externaliza-se" o bloqueio, o impasse imanente do desejo, numa força "repressora" que se impõe de fora ao querer", algo semelhante ao Amor Cortês no qual a Dama (dômina) é transformada em Déspota. As ações do crime organizado brasileiro (PCC: primeiro comando da capital) ou os ataques impiedosos à psicanálise (como "O livro negro"), movimentaram a denunciada "imobilidade messiânica" da Mônada psicanalítica que sugeria ter, com respeito ao social, uma relação interna de imanência. Avançamos? "O evolucionismo implica sempre na crença num Bem Supremo" - Lacan, "A Ética", ou permaneceremos, como dizia Benjamim, com a "dialética em suspenso"?

No livro “Para uma crítica do presente”, publicado pela Edusp em 2001, Irene Cardoso estabelece, logo no primeiro capítulo, uma diferenciação entre “presente” e “atualidade”. “O presente – diz – é o lugar temporal a partir do qual a reconstrução histórica é realizada; é também o lugar da construção da problematização que orienta a reconstrução histórica; esta não é o desenrolar contínuo dos acontecimentos na história”. “Atualidade – segue – implica uma temporalização do presente, que não é dado mas construído por uma problematização, ou seja, trata-se de reconhecer ou distinguir entre outros um certo elemento desse presente. Nesse sentido a atualidade é o presente como diferença histórica. A atualidade constitui-se, então, como uma alteridade em relação ao passado e ao próprio presente. Caracteriza-se como um movimento de disjunção desse presente, de uma não-contemporaneidade dele em relação a si próprio (Foucault, 1972, 1974, 1988; Derrida, 1994)”. “A atualidade constitui-se como o lugar de referência da reconstrução histórica (Michel de Certau e Paul Veyne)”. “A atualidade é produtora das diferenças que orientam a reconstrução histórica, pela construção da intriga (Veyne, 1983, pp.15, 53, 48)”. “Para ambos os autores - conclui – a noção de atualidade é diversa da noção de presente, na medida em que rompe com uma perspectiva de continuidade histórica na qual o presente estaria constituído como figura enquadrada pero futuro e pelo passado. A noção de atualidade implica a coexistência de temporalidades diversas, de descompassos e ritmos temporais diferentes”.

Santo Agostinho definia o “presente” como um movimento que joga o “futuro” em direção ao “passado”. Pensemos, então, a atualidade como uma retirada de um elemento de tal movimento e utilize-mo-lo de referente para que faça a diferença na reconstrução histórica. A atualidade transferencial, na experiência psicanalítica consiste na reatualização do conteúdo inconsciente naquilo em que este é sexualidade (infantil), ou seja, um movimento de repetição que joga o passado em direção ao presente e ao futuro. Uma inversão temporal, ou, se preferirem, a-temporal. Precisamente por isso o discurso freudiano é tão atual. É um constante retorno e, ao mesmo tempo, uma reatualização.
Já disse que Bela Alma é, na atualidade, aquela que vive satisfeita com sua própria e presumida perfeição moral, ignorando ou desconhecendo os problemas efetivos.

Plon referia-se aos psicanalistas que “em geral ignoram até o alfabeto” da navegação política e aos “ressentidos”. Mas como não pretendia “jogar a água da bacia junto com os bebês”, convidava-nos a caminharmos em direção ao Saber do Analista, que não consiste, precisamente, em abrir as janelas (virtuais) e jogar no mundo toda uma mestria, senão, pelo contrário, “deixar entrar”. Daí o recurso a Michel Foucault.
Associava, então, a guerra à noção psicanalítica de “conflito”, dizendo que, não por acaso, Freud, o conquistador, utilizou tantas metáforas militares ou políticas. Há, não cabe dúvida, uma relação entre o inconsciente, a política e a guerra.5

Já faz mais de meio século, 1957, que Lacan ligou o romantismo aos preconceitos políticos que nos remetem a um “organicismo social”. Seríamos 'membros' de um 'corpo social' pelo qual teríamos que 'dar a vida', se fosse o caso. Morrer pela pátria, como exortam alguns Hinos Nacionais.
Na paz (neurose), escreveu Freud a Jones em 18 de fevereiro de 1919, o Eu está forte mas surpreso... no traumatismo (neurose), ele está como que fascinado mas também, paralisado. Na neurose traumática de guerra, o eu está preparado, mas enfraquecido. Compreendeu que quando a bala (perdida) chegar ele poderá estar morto pelos instrumentos de seu 'Alter ego'.
Plon tratava de demonstrar como a guerra vem alimentar à psicanálise para a reflexão teórica.

No Vocabulário da Psicanálise, Laplanche e Pontalis definem o conflito (psíquico) como a oposição de exigências internas contrárias, manifesto entre um desejo e uma exigência moral ou latente que se traduz pela formação de sintomas. A descoberta freudiana mostrou que o conflito é constitutivo do ser humano: entre o desejo e a defesa, entre os diferentes sistemas e instâncias, entre as pulsões, e por fim, o conflito edipiano, onde não apenas se defrontam desejos contrários, mas aonde estes enfrentam a interdição.
Dizia Plon: “A guerra é um dos enigmas deste mundo”. Um enigma que se repete, até o presente, desde a mais alta antigüidade. A imagem do cavalo, que desaparece na Primeira Guerra Mundial, faz um marco na história da crueldade que, então, se instrumentaliza com maior eficácia.

1933. Ano em que Freud responde a uma carta de Albert Einstein. Porque a Guerra? Título que soava bem a Freud, perito, não em guerra, mas em palavras. Surtia efeito! Chamava-a de “comércio inter-humano” ao passo que Lacan a definia como uma “ligação social”.

Há vários tipos de guerras, até aquelas que não se deixam falar pelo seu próprio nome, chamadas de “acontecimentos”, como foi o caso da Operação Condor, exportada ao Brasil desde a França. Acontecimentos em que a discrição compete com a hipocrisia, dando razão a Freud na escolha de seu título. Muitos interpretaram, durante muito tempo, esses textos como sendo de “inspiração pacifista”.

Porém, não podemos ocultar o enigmático mediante uma ilusão. Uma primeira leitura, então, poderia nos fazer pensar que a questão era “porque escolhemos a guerra em vez da paz?”, aproximando-nos da perspectiva filosófica de Kant no Projeto de Paz Perpetual. Há tantas ambigüidades e conflitos no pacifismo!

A segunda leitura nos remete a uma pergunta formulada a um perito, como perguntaríamos a um geólogo ou a um sismólogo, dizia Plon, - Porque acontecem os terremotos? Ou os Tsunamis? Explique-nos essas catástrofes naturais que mergulham a humanidade na miséria e na angústia?

A perspectiva, agora, é a de compreender uma constatação ou uma realidade, sendo a ação para muda-la eventual e segunda. Lacan, no seminário da Ética reprova Freud por ter aceito ocupar o lugar do perito, acusando-o de uma cegueira. Diz que a guerra coloca em cena o “incalculável”, a saber, o gozo.
Plon não acredita que estes “conquistadores”, Freud e Einstein, se colocassem na posição de “peritos” e sim na de intelectuais preocupados em não estar ausentes face o desenvolvimento dessa forma de comércio inter-humano. E ressalta a “humildade” presente em ambas cartas frente a revelação de uma ferida narcísica.

É fundamental que um cientista se preocupe com o uso possível de suas descobertas. Em 1974 Lacan anunciava o 'pavor dos sábios com relação aos micróbios de laboratório'.6

Einstein pensava que a solução residiria no estabelecimento de uma “autoridade legislativa superior” que deveria passar pela “renuncia incondicional dos Estados em relação a uma parte de sua liberdade de ação”, ou seja, em relação a sua “soberania”. Já denunciava em 1932 o fracasso da Sociedade das Nações, instância oriunda do desastre da Primeira Guerra Mundial e desprovida de qualquer poder. Uma idéia kantiana que Freud ironizava sem citar Kant, como, “a paz eterna”.

Plon citou Cavaignac que denominou a colonização de “guerra perpétua” e não de “obra civilizatória” como seus sucessores diriam.
Seja como for, Einstein abandonou rapidamente sua idéia, ciente de que os Estados jamais abrirão mão de sua Soberania. Assim, interpelou ao psicanalista: - Porquê as massas humanas aceitam colocar suas vidas à serviço de grupos minoritários?

Freud evocou uma verdadeira necessidade humana: a de odiar e aniquilar. Explicações ideológicas, econômicas ou políticas não esgotam o sentido. Saberia Freud, o especialista em pulsões, um meio de canalizar as negativas e dar aos homens a possibilidade de resistir a elas?

Einstein dirigia-se a um perito comparável em saber. Um físico. Freud não era ingênuo. Mostrava-se nietzschiano ou mesmo, foucaultiano, por antecipação. Situou o registro do pulsional, propôs ao físico substituir o termo “potência” - que ele utilizara – pelo termo “violência”, o que lhe permitiu demonstrar que a violência é primeira. Que ela funda a potência e, portanto, funda o direito.7 O apaziguamento dessa violência não significa o “cessar fogo”.

E colocou a questão: - Qual é o objetivo da guerra? (Justa ou injusta, acrescentou Plon). Seja em nome de Deus (boa guerra) ou pelas mais sórdidas justificativas materiais (a má), nenhuma escapa à engrenagem do atroz e do cruel e sempre originando regimes ditatoriais.

Os objetivos apresentados por Freud eram dois: primeiro, a destruição de um dos elementos do conflito. “Comer ou ser comido”, eliminação, depuração, extermínio, “solução final”. Segundo, o assujeitamento do vencido pelo vencedor, dominação econômica, etc. Mas a questão não pára por ai. Ou o vencedor acaba dividindo-se e a guerra renasce ou o perdedor, subjugado, se revoltará para encontrar sua liberdade. A história demonstra este processo sem fim. Não se pode falar no Fim da Guerra e isso revela a impossibilidade do UNO, fonte do incessante retorno. Como no amor.

Unidade do povo, unidade da nação, figura organicista (Lacan) cujo objetivo é a negação do conflito motor da sociedade.
A insistência dos discursos moralizadores sobre o tema da unidade, visa ocultar o cunho “assassino” velado ou explícito das guerras santas contra as potências do mal. Argumentos que podem ser encontrados em Michel Foucault na sua aula no Collège de France, 1971: É preciso defender a sociedade! Ele referia-se ao “prazer calculado da fúria” que remete à idéia do incalculável de Lacan. “A posta em cena de uma violência meticulosamente repetida”8 e assim ele invertia o enunciado de Clausewitz: a guerra não é a continuação da política em outro registro, mas a política é a continuação da guerra por outros meios, o que também deu uma reviravolta à afirmação que Freud utilizara em sua carta: “A violência é o fundamento de toda ligação social” (Maquiavel).

Bem, prazer calculável ou incalculável não apresentam nenhuma contradição, pois ambos remetem ao automatismo da repetição.
E então, porquê os homens aceitam ir à guerra?

Freud distinguia duas razões: As “nobres”, que se dizem em voz alta, mas não distinguia ai (como fez Kantorowicz) as ditadas pelas verdadeiras causas e as resultantes da manipulação dos “grupos minoritários”, citados por Einstein, para os quais os homens fazem a guerra. E os “motivos silenciosos”, um mal que ele dizia ser vão sonhar com exterminá-lo do homem e que é indissociável da Pulsão de Vida. Neste ponto, Plon reinterpretou a divisão entre “pacifismo” e “belicismo”. O primeiro, negando a universalidade da violência, funciona como um “eu não quero saber de nada disso”, ponto central das desavenças entre Freud e Jung. Os pacifistas voltados para Eros ignoram Tânatos.
Freud já havia apontado em Psicologia das Massas que o cimento da unidade, da coesão ao coletivo organizado, da sua duração e resistência, denotam a rejeição ao outro, ao diferente, ao estrangeiro e a sua eliminação. Por isso que a continuação da guerra é o Discurso da Política. (Não dos políticos, que se entenda, pois o destes está atrelado ao Discurso do Mestre e no caso dos manipuladores, como os médicos candidatos citados, ao Discurso dos Cínicos).

O significante nada mais faz do que conduzir-nos a essa roupagem da unicidade, veículo das opressões, quaisquer que sejam elas, o triunfo da barbárie de que falava Espinoza. E esta é a atualidade do discurso freudiano sobre a guerra.

Antes de terminar, acrescento mais duas questões minhas com respeito aos escritos freudianos sobre a guerra: Uma que diz respeito a uma certa evolução (darwiniana?) que vai da força muscular, passa pela posse dos instrumentos e culmina na “superioridade intelectual” que é um substituto da “força bruta”, enquanto que o objetivo da luta permanece o mesmo.9 Outra: afinal, o que favorece, então, o estreitamento dos laços sociais?

Freud convocava Eros para atuar contra a guerra, provocando, 1º relações semelhantes àquelas relativas a um objeto amado, embora sem afinidade sexual e 2º a identificação, que leva os humanos a compartilharem interesses comunitários.

Nas primeiras eu considero que se encontre a 'phylia': a amizade como modo de vida. Nas segundas, o que sustenta o vínculo é a própria finalidade do encontro, como os “grupos criativos”.10

Assim, atravês do nosso Projeto Etcétera e Tal... psicanálise e sociedade, geramos “nossa” ação política, inaugurando a “Biblioteca Popular de Itaquaciara: Dona Nélida”, organizando a Jornada “Sobre a banalidade do mal”, em 2010, e a Jornada sobre "O mal-estar na cultura: solidão", inspirados em Eduardo Galeano, que acontecerá em setembro próximo em São Paulo e em novembro na cidade de General Pico, província de La Pampa, Argentina.
Não estamos silenciosos!

Arnaldo Domínguez, Itaquaciara, 13 de julho de 2010.

1 Extraído de “O mais sublime dos histéricos – Hegel com Lacan – Slavoj Zizek. Jorge Zahar Editor.
2 "É natural que, em face da estreita relação que estabelece com o paciente o médico desponte como liderança, principalmente nas comunidades menores”, diz o Presidente do Conselho Regional de Medicina da Paraíba, João Medeiros Filho, preocupado com o expressivo número de médicos candidatos. (Jornal do Conselho Federal de Medicina, ANO XXV, nº 185 – Junho 2010)
3 Ver definição e evolução deste conceito no capítulo anterior.
4 Machado, R., “Deleuze e a Filosofia”, ed. Graal, RJ., 1990.
5 Lacan, “A lógica do fantasma”, 10 de maio de 1967.
6 “A única ciência relativamente séria é a ficção científica” - Lacan.
7 Nullum crime sine lege! Não há crime sem lei, cita Hannah Arendt em 'Eichmann em Jerusalém”.
8 Foucault.
9 Freud. Página 246, Obras Completas, Imago. Porquê a Guerra?
10 Doménico de Massi.

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