"A Cultura da Solidão" - por Arnaldo Domínguez

“A solidão é um refugio criativo em nossa vida que está sempre por um fio. Quem poderá estar só consigo mesmo, aberto a compreensão de nossa época histórica, capaz de experimentar o sem saída, na sua angústia, diante do nada desolador?”  -  Transcrição livre do pensamento Nietzschiano.

         A maioria, doutos e leigos, confundem solidão com enfermidade, com dor e, também, com um bom negócio. Fabricam remédios, inventam companhias, muitas vezes, más, e prometem erradicá-la como se fosse um mal. Partindo de um pressuposto erróneo tentam nos convencer do valor das soluções propostas. Não fique só! Nos dizem. Ligue para o número tal desde o seu telefone celular e encontre sua alma gêmea. Tome anti-depressivos. Viva a cracolândia! Pare de sofrer!
Vai viajar? Nós iremos antes e assim lhe indicaremos as melhores opções. Não se esforce em aventuras perigosas. Leve um guia e um GPS.
Alguns psicanalistas fazem alarde: vivemos o declínio da função paterna! E também confundem um conceito operatório da teoria com um fenômeno social. É do patriarcado que se trata. Sem tal declínio, nós não seríamos psicanalistas, por exemplo. Não se dão conta, à semelhança do analfabeto político de Brecht, que desta denúncia se demanda uma nova inquisição. Um punho forte! O retorno do Pai terrível, para que acalme a horda deste seu gozo para além do falo, porra louca, como se dizia.
Que a sociedade civilizada se vê permanentemente ameaçada de desintegração e, desta sorte, cada um de nós pela ação dos – ditos – semelhantes, já não representa nenhuma novidade, ao menos desde que Freud escreveu o mal-estar na cultura. Já em 1919 quando publicou “O Estranho”, ele escrevia que a solidão, a escuridão e o silêncio são os aliados dessa angústia estética que poucos superaram de suas experiências infantis.
A cultura do consumo tem feito da solidão e da violência o mais lucrativo dos mercados, profetiza Galeano, escritor uruguaio nascido em 1940. Culpa-se o narcotráfico, mas é para exonerar o próprio sistema de suas responsabilidades. Para Nietzsche, a verdadeira solidão é a que mata a subjetividade. Mas Zaratustra nos delata: nada queremos saber acerca disto!
Sartre denunciou que as “nossas” Academias estão organizadas pela dominação, causando extrema solidão coberta por um véu ilusório de autonomia. Autonomia essa que é só solidão, solidão essa que incita à vaidade e acentua a fraqueza.  A revista Istoé, edição de 28 de outubro de 2009, apresenta uma matéria de capa exortando a felicidade dos solitários. Propõe uma receita do “equilíbrio” e conclui com o curioso imperativo: “Assim, é possível ser feliz sozinho” que remete, inegavelmente, à masturbação.[1]  Além de se mostrar aliada ao Mercado Single, o mercado da solidão – e assim oferecer-nos a sustentação da tese de Galeano – criar categorias do tipo que não tem tipo, o “Se” de Martin Heidegger, promove a solidão ao homem socializado atual que é aquele que perdeu a liberdade desde o momento em que estes novos “educadores” implantaram-lhe desejos, projetos e ambições com a promessa de um sentido à existência.[2]
Quem sabe, mesmo assim, possamos ir ao encontro da solidão inerente à nossa época, e de tal sorte, ao encontro de nós mesmos?
SOU (feliz) SOZINHO, como destaca a revista mencionada, remete a duas categorias que substantificam o SER e que, então, não podem atribuir-se senão a si mesmo. Para Lacan, as categorias do SER são a dos objetos em tanto diz-se que eles “são”, ou em tanto eles “são”, entes. O SER é o Real vindo à luz da simbolização, em tanto que o Real representa o ponto em que o ser se subtrai a ela. O Real não é o SER que se afirma na proposição.[3] 

O SER PERANTE O NADA
                                                                 
Amalaya la noche traiga recuerdos, que haga menos pesada mi soledad...” - Atahualpa Yupanki

         Pretendo lhes mostrar que o que chamamos “Solidão” é um fato estrutural situável nos três registros. RSI.
Há, em primeiro lugar, uma solidão arcaica, digamos, radical. Real. Correspondente ao inaudível silêncio pré-simbólico e que se exprime no extremo da psicose: no autismo. E quiça nos primórdios do infante (enfans), no tempo mítico que antecede à simbolização do grito pelo Outro.
Em segundo lugar, a Solidão simbólica, correspondente à falta de objeto (no sujeito e no Outro) e que se exemplifica melhor na solidão do ato analítico e na angústia a que este aponta tal qual o dedo em riste do Criador[4], visando arrancar do ex nihilo alguma vorstellung raëpresentanz, apostando no recalcamento primário de um neurótico que está só com seu fantasma funcionando como defesa perante a “dura” realidade externa.[5]
E, em terceiro lugar, a solidão social que ocorre quando o laço degradado ameaça romper o pacto, pois o individualismo extremo, quase um auto-erotismo autista do gozo, tende à indiferença com relação à alteridade, chamada, muitas vezes de modo ideológico, de alienação. Trata-se de um aspecto imaginário porque remete ao corpo, mesmo ao corpo social e a seus buracos, entretanto, é extremo porque quando fracassa o valor solidário que repousa sobre a imagem do outro, que é dito “semelhante”, se instaura o caos e a barbárie. Aqui se implanta um gozo que não seria sublimado, e que fica limitado ao número de buracos que existem nesse corpo e sem articular-se ao desejo. Situar-se-ia aqui a Cultura da Solidão da que fala Galeano. Quero dizer, quando o objeto é elevado à altura do falo, do fetiche, do Ídolo e os fins sociais mais elevados, onde Freud situava a sublimação como o destino desejável das pulsões, se coadunam no racismo, na homofobia, no velhismo, na misoginia, na androginia, na xenofobia, no anti-semitismo, etc., gozando de ampla aprovação social, estamos perante o triunfo do logro fetichista da perversão. Do “bom sucesso” auto-erótico pelo objeto perdido, quando o silêncio da falta de uma imagem se põe em cena no espetáculo de horror da civilização, como nos mostram a diário os noticiários. Assim se implanta o contrato do perverso que obriga à vítima a assinar com sua vida, com seu corpo, com seu sangue e com sua alma, que é vendida nesse pacto diabólico em busca, por exemplo, de maior “segurança”, um dos afetos destacados já na “Ética” de Espinoza. E digo “vítima” da vertente discursiva onde se situam todos e todas os e as que, por amor a um Pai que cedeu em seu desejo, de um modo perverso e covarde, assinam o contrato sem duvidar, pois o Outro lhes demanda isto.
Assim como quando hoje nos informam: “Você tem um limite de crédito pré-aprovado” num valor... que supera[6] tuas possibilidades de pagar, apostam em que: Amar é dar o que não se tem! (Por favor não desligue, sua ligação é muito importante para nós! E está sendo gravada, para sua ? segurança!).
Retornamos, assim, de um modo circular, a um circuito que se fecha em si mesmo desconsiderando o que há de mais humano nos homens e nas mulheres: a instância da palavra.

A TUA PRESENÇA...

“Se só me faltassem os outros, vá, um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mais falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo” - “Dom Casmurro” - Machado de Assis

         O significante faz um buraco no Real inacessível do umbigo do sonho – diz Lacan -[7] no irrepresentável e ininterpretável, digamos. Cria assim o corpo erógeno onde era o corpo natural, remarcando os lugares que a natureza, o deus espinozista, propicia, e oferecendo ao corpo biológico a possibilidade de gozar. O corte engendra a superfície e suas delimitações.
No caso de um homem paranóico que se queixava à sua jovem psicanalista desde as entrevistas preliminares: “Eu não tenho com quem conversar” e, em seu delírio, que misturava sangue com ancestralidade, hemorragia, “morcilhas” e molho de tomate, a cadeia da articulação significante nem sequer constituía um solilóquio. Quem fala só pretende falar ao Outro um dia, dizia, mutatis mutandis, o poeta espanhol Antonio Machado. Mas, neste caso, sem ninguém que encarne o Outro e vítima de pesadelos nos quais uma ponte se partia na metade (do caminho) e o fazia cair num abismo sem fim e sem paredes, sua alternativa era ocupar-se em atividades infinitas até “cair desmaiado”[8] evitando o horror de dormir e sonhar. Foi internado em estado de absoluta exaustão e teve a sorte de encontrar, na analista iniciante, voluntária do hospital, uma oportunidade imaginária para se segurar. Ao poder representar o buraco (mesmo que se lhe escapasse das mãos), quando lhe ofereceram a possibilidade de um laço, deste efeito surgiu um novo Imaginário, menos aterrorizante do que o proveniente de sua absoluta solidão e, ao mesmo tempo, a possibilidade amistosa de que lhe suponham um sujeito. Ou seja, o oposto da violência a que habitualmente se encontra submetido.[9]  

Este recorte clínico (de uma supervisão que dirijo) nos permite definir a solidão de um modo diferente ao que diz o dicionário: isolamento. “Sinto-me como se estivesse em plena avenida Paulista – ou seja, em meio à multidão – sem ter com quem conversar”, dizia este homem a sua analista imigrante que também buscava em São Paulo a perspectiva de construir seus laços.
Rilke já apontava para o “amor” que só se realiza na mais extrema solidão (e não no isolamento) e Winter[10] o associa ao amor dos histéricos errantes entre dois fantasmas (masculino e feminino) em busca de alguma possibilidade de identificação.[11]
Mas, não será – de fato – nesta cena descrita pelo “enfermo” que se trombam as massas que atravessam as avenidas paulistas de todas as metrópoles do mundo contemporâneo que soubemos construir? Que não encontram no amor algum antídoto eficaz contra essa solidão de que se queixam? E assim retornamos à condição em que Atahualpa desenhava o tropeiro solitário das Pampas desoladas? Las penas son de nosotros, dizia, las vaquitas son ajenas. As penas são nossas, as vaquinhas (o mais-de-gozar) são alheias. Ou seja, são do Outro encarnado, pois o Grande Outro passa a existir quando se encarna e, pior, quando se recusa a desencarnar. Com a diferença de que as lembranças de Atahualpa referem-se à memória e não às reminiscências traumáticas que provocam a repetição no sentido da morte.
Se o delírio de Schreber denunciou ou inspirou, de algum modo, a megalomania nazista[12], que não suportava a divisão do sujeito, aliás, como não é suportada pelo discurso da ciência e nem da religião, não podemos supor que este delirante denuncia a condição humana atualizada?[13]
O amor é uma forma possível de suportar a solidão simbólica, tratamento privilegiado da castração, suplência da não relação sexual, quando não estiver contaminado pela neurose, que diz respeito à solidão imaginária e que se sustenta na satisfação masoquista.[14]
No caso da América Latina, sempre me pareceu que os maiores – quiçá, os maiores em narcisismo, para além da dimensão geográfica – Brasil e Argentina, cujas elites dominantes olham com inveja ao ideal imperialista do Outro, antes da Europa, depois dos Estados Fundidos, jamais se interessaram muito em voltar esse olhar ao interior, com tudo o que isto significa. A não ser para extrair-lhe o suco e o tutano.  Não é por acaso que compitam tanto, au de lá do futboll, pela fatia do Mercado e que o Mercosul não passe de um ideal utópico por ora. Se o território argentino foi totalmente queimado e desmatado, arrasando com tudo o que era “natural”, na corrida do agri-bussines, e o Brasil tornou-se o maior exportador de carne do momento, e a nação da energia do futuro, já podemos prever aonde isto nos conduzirá.[15]
Os psicanalistas sabemos que a solidão é um fato de estrutura, assim como o que chamamos de civilização. Ambas se constituem a partir de uma lei interna ao desejo que recebeu – em Freud – o nome de recalque. Por sua vez, também sabemos que a civilização impõe recalques (ou repressões) aos sujeitos, atormentando-os, neurotizando-os. Por outro lado – o interno – os sujeitos sofrem da solidão da falta-em-ser, própria à divisão subjetiva e palco privilegiado para as construções do amor e a degradação da vida amorosa, assujeitados à falta de um significante no Outro e negando esta condição pela via das relações objetais através do fantasma, essa janela pela qual cada sujeito olha para o mundo e constrói esse delírio compartilhado que chamamos realidade. O inconsciente é o social. Portanto, o social é o discurso do Outro: seu imperativo categórico.
A civilização opõe-se à suspensão do recalque, mesmo quando cria a ilusão de te-lo eliminado através de condutas “libertinas”, e assim faz reinar a hipocrisia, ou seja, o não reconhecimento das pulsões pelas que somos habitados. Não é de estranhar que constantemente se renovem – por deslocamento – assuntos sobre os quais não se deve falar. Chamemos este fenômeno estendendo o sentido do significante “Pedofilia”, como a condensação. Afinal, nos dividimos em três grandes categorias: manipulados, manipuláveis e manipuladores.
Infantilizados no silêncio imposto pelo toque de recolher da via regressiva do gozo que aprisiona à Demanda do Outro, vemos proliferar a felicidade das pulsões o que corresponde à recusa da Castração e da Alteridade conseqüente, perversão dos que usurpam o lugar do (Pai) morto com a única perspectiva de gozar, em seu auto-erotismo, do Todo. Este mecanismo atinge seu ápice nos totalitarismos, mas nem por isso desaparece nas chamadas democracias, entre aspas. Seduzem para governar a seu bel prazer. Logo, não podemos, sob nenhuma hipótese, abandonar a teoria da Sedução como se fosse enganadora. A sedução o é, mas a teoria não, mesmo que ela não impeça de que as coisas ocorram. É neste particular que podemos situar a “abstenção” ética do psicanalista, que possibilitará ir mais além da solidão. Ou, se quiserem, ser a causa que a transforme em criativa, assim como falava Zaratustra, já que opõe-se à minoridade irresponsável dos analisantes.[16]
Antes disso, o sedutor – como lugar nessa estrutura – pode ser tanto o pai quanto a mãe, o avô ou a avó, o titio ou a titia e seus representantes sociais, quanto um/a estranho/a (tão familiar). E nestas circunstâncias podemos situar uma outra modalidade de solidão, já que o Outro (encarnado) assim nos abandona no abismo sem fundo e sem paredes do puro imaginário. Evidentemente, se falamos em tormentos neuróticos, significa que houve eficácia do simbólico e não é por essa fenomenologia que se impõe que iremos inventar alguma clínica que de conta do Real por outra via que não seja a do Simbólico, ainda que “manco”. Lacan sem Freud não passa de um “Novo Evangelho” segundo certos lacanianos. É o simbólico que faz o homem, mesmo quando a ditadura do prazer nos obrigue a renunciar à singularidade do desejo e nos faça espelhar em identificações comuns, regredindo da neurose à perversão entendida aqui como uma montagem fantasmática, é o significante que impede a queda nesse abismo.[17]
Então, se o primeiro abandono trouxe efeitos simbólicos (o recalcamento primário é lógico) o segundo produz efeitos imaginários (míticos, no sentido de um mito individual, que fará da histeria uma obra de arte deformada, da neurose obsessiva, dialeto da histeria, uma religião individual e deformada e da paranóia, através do delírio, uma filosofia deformada, como dizia Freud).
Foi por aqui, também, que os mestres legisladores da deontologia moral situaram – em sua douta ignorância, ou seja, sem nada quererem saber sobre a sexualidade – a tantos simuladores e dissimuladores, aos tipos do “Estado Peligroso”, delinqüentes em potência aristotélica, prestes da passagem ao ato, onde cabe o refugo do i(a). Eu ideal. E atualmente os situam como inclassificáveis sobre os quais já cantara o Grande Otelo: “Você é um tipo que não tem tipo, com todo tipo você se parece... você é um tipo desclassificado”. Histéricos e histéricas, perversos, paranóicos, bêbados e equilibristas, negros, judeus, homossexuais, estrangeiros sem documentação, obesos, fumantes, velhinhos, etc., (todos os abandonados pelo bando, os Homo Sacer de que fala Giogio Agamben) foram parar no mesmo saco ideológico e, para muitos, é bom que fiquem por lá mesmo, banidos, como convêm ao princípio da constância e à perversão psiquiátrica. 
Todavia, o capitalismo tardio veio em seu resgate e os cidadãos (in)sustentáveis alardearão: “eu tenho direitos, pago impostos”.  Dito em outras palavras: Mais respeito, somos consumidores de objetos!  E farão sua passeata no Planalto Central: Eu inauguro um monumento, eu oriento um carnaval! Já o dizia Caetano. Resta-nos ir além das evidências (o que se vê em aparência), estarão como suporte do desejo ou como sustentação do Outro? Vejam, senão, as vicissitudes das Paradas de Orgulho GLBT. Bom, apenas como exemplo, já que isto ocorre em todas as formas instituídas, mesmo quando as razões estejam cheias das melhores intenções. Projetos Sociais surrupiados pela manipulação política, Crianças Esperanças para espetáculos globais e xuxais. Sou da Paz, Viva o Centro, Salvem a Mata Atlântica ou as baleias, etc. É muito rápida a queda pelo viés da Demanda do Outro. Acomodação fantasmática sacrificial que faz claudicar a vertente do desejo. “SALVEM O SUJEITO: teria que ser o imperativo”. Mas qualquer ONG fundada neste slogan, também corre perigo. Felizmente o sintoma resiste à massificação! E se tem gente que não se interessa por sexo, outros não estão tão preocupados em ganhar dinheiro como único propósito ideal.
Quando Eduardo Galeano fez sangrar (outra vez) as veias da América Latina, denunciando a atual cultura como da solidão, e propôs a equação: + solidão + consumo, + consumo + solidão e o resto desta operação é o acúmulo crescente de lixo e de pobres (que são lixo), me fez refletir sobre o exílio dos sujeitos que se encontram à mercê do Grande Outro contemporâneo, como sempre um deus obscuro e enganador, porque confunde, como Abraão foi confundido pelo significante hebraico “Olé”, que tanto significa “subir” quanto “sacrificar”. O chamamos MERCADO e é todo-poderoso em suas mega fusões e pagamos seus tributos através de investimentos biliardários em pesquisas com o intuito de sabermos o Che Vuoi? Que “me” queres? (Qual é a tua demanda?) É azas trabalhoso dizer: que quero eu?
Conheci de perto – e de perto ninguém é normal – um famoso psicanalista que, sacralizando todo meio para justificar os fins, indo no sentido contrário dos começos obscuros até os objetivos mais brilhantes[18], vendeu seus saberes ao Mercado[19] com o intuito de ajudar a traçar o perfil consumidor das donas de casa do ano 2010, que já está tão próximo. O tempo não pára! Excomungou-me, na ocasião, por não ter resistido a uma ironia. Disse-lhe que ele (depois de Dercy Gonçalves) tinha elevado o sabão em pó à dignidade de Omo Sexual, perdendo, assim, o mestre para não perder o chiste.[20]
Não lhes digo, porém, nada de novo, como constatarão, e nem tenho a pretensão de trazer alguma verdade sobre o verdadeiro. Nisto me diferencio dos profetas e se a verdade falo, como afirmou Lacan, não é toda. Digo algo que todos já sabemos, com a intenção de que não nos conformemos na placidez do esquecimento pois este é uma das formações do inconsciente e, como tal, sempre oculta um sentido. Quem queira dominar, utilizará a verdade para mentir.
Sabemos, por exemplo, que se acusa aos plantadores de soja transgênica de atacarem toda forma nativa de vida, o que inclui a humana, provocarem a perda do habitat a inúmeras espécies, incluída a dos falantes, a intoxicação maciça por agro-tóxicos e o êxodo. O programa civilizatório que implantam de um modo totalitário, causa empobrecimento do solo, esgotando os recursos hidro-pesqueiros, má-formações congênitas, câncer, leucemia. As ações da bolsa das multinacionais das patentes, valorizam-se de maneira astronômica graças aos plantios que se expandem por toda a nossa sofrida América do Sul, ocupada por novos “conquistadores” que não modificaram a lógica do descobrimento, munidos de semelhante estrutura de opressão.
Mas, não somos todos nós que nos prestamos a satisfazer o desejo do tirano? Isto também não é da lógica do fantasma? Uma analisante construiu a analogia do fantasma a uma gaiola, e já que não existem associações que se pretendam livres, soltar o pássaro ali aprisionado resultará fatal. O arteiro apanhará da mãe sofrendo as marcas qual navalha na carne e o pássaro, habituado ao cativeiro, não sobreviverá na natureza. “Há na natureza algo que é seu isso – diz Lacan, no livro 4 – estruturado segundo o modo de uma articulação significante... mas... o significante funciona sobre o fundo de uma certa experiência de morte”. E, assegura Sloterdijk que “sem indústria da morte, não há indústria da distração”. Eis a gaiola da pós-modernidade. Denuncia-se para entretenimento e alívio moral do telespectador.
Todavia, contaram-me – de fonte confiável - uma anedota dramática que talvez não dê Ibope e nem maior audiência: um dos jovens encarregados de expandir as grandes queimadas florestais no Estado do Pará, Norte do Brasil, para transformar as matas em fazendas de soja ou de carne, encontrou-se na estrada com um filhote de macaco chamuscado, apavorado e órfão. Foi abraçado de um modo tão firme e trémulo pelo sobrevivente que sentiu-se tocado no ser, que deveria permanecer insensível ou indiferente (ou seja, sem reconhecer as diferenças). Acompanhou-o na longa agonia durante 48 horas, até o desfecho final da afecção pulmonar provocada pela fumaça tóxica. Vale lembrar que há fumaças muito mais tóxicas poluindo a atmosfera das que é capaz de descrever nossa vã psicologia e sobre as quais não se pode falar sem ofender o desejo do tirano e de seus representantes comerciais.
O rapaz desta história não pode mais continuar em sua empreitada. Como poderíamos classificar sua inibição conforme os critérios da nosologia? Histeria masculina? Neurose traumática de guerra? Quarto modo de solidão, pela via da angústia?  Teríamos que interroga-lo como Nietzsche nos interrogou através de Zaratustra: “Mas és tu capaz disto: ser um assassino?”
Os filósofos mais otimistas dizem que estamos num “intervalo histórico”[21] e que isto causa angústia e a angústia forja a necessidade de ir ao encontro do que é humano no homem[22]. Eu digo que o que há de mais humano no homem é a palavra e, já dizia Freud, ela pode curar ou matar. A palavra é a chave que abre a porta da simbolização, mas a angústia é o momento (intervalo) em que a palavra já não abre mais nenhuma porta.[23] E é aqui que situo outra perspectiva da solidão no tempo e na cultura.
A sociedade atual filiada à crescente ética individualista sobreviveria, um instante sequer, perante qualquer imponderável desastre? Nos interroga Galeano...
Eu lhe respondo que diversos acontecimentos isolados (também) abrem constantemente a perspectiva criativa (como a definiu Domênico de Masi), embora sua ação seja opacificada (sempre pela constância) mediante a força de dominação das formas instituídas. Finalizemos citando Sloterdijk: “Saber e Poder são os dois modos pelos que se chega ao moderno mais além do bem e do mal, e no momento em que nossa consciência da o passo em direção a esse mais além, está presente inevitavelmente o cinismo”.  Ou seja, nos deparamos com a impossibilidade de poder diferenciar claramente entre os meios e os fins. E assim, já nem as elites da reflexão nem a massa dos ingênuos acreditam em valores, pois os detentores do saber sobre as coisas o utilizam para enganar, manipular e dominar aos outros. Os amorais servem a uma instância mais elevada que a moral, assim como fica revelado na reportagem de capa da revista Istoé. É isto!
É o que tenho a lhes dizer por ora.
ARNALDO DOMÍNGUEZ, CEP (Centro de Estudos Psicanalíticos); São Paulo, 30 de outubro de 2009.



[1]    Onanismo: uma alegria que não tem que se agradecer a ninguém.
[2]    O “SE” é o ninguém – Heidegger. O Ser e o Tempo.
[3]    Lacaniana – Moustapha Safouan – Editora Paidos.
[4]    Não há ato sem angústia.
[5]    Quando terminei a escola primária, aos doze anos de idade, eu escrevi um poema que começava assim: “Mi infancia fué un castillo / sin duendes ni fantasmas / el único enigmático habitante era yo / mis amigos, los perros y las ovejas mansas y el caballito “corcho” que un día me pateó...”
      Por causa dos densos silêncios familiares sobre diversas tragédias reais, minha experiência infantil, apesar de rica em natureza e ampla em horizontes, não diferia em absoluto da situação de um filho de exilados, sobreviventes a um campo de concentração. A escuridão, a imensidão da velha casa, os animais peçonhentos, as aranhas, etc.,  que abundavam, não me provocaram maiores temores.  Os humanos, pelo contrário, me intimidavam. Quando me questiono sobre o porquê me interessei à psicanálise, a resposta se delineia por esta perspectiva: além de ter conseguido reverter o ódio primordial em algum tipo de amor aos semelhantes, mesmo que o estadio do espelho tenha tido, em mim, muito de zoologia, por dize-lo de algum modo, fui marcado pelo interesse do não sabido. Então venho, assim como Kafka se apresentou aos “eminentes senhores da Academia”, nesta errante condição. Trata-se, então, em meu caso particular, de uma enorme metamorfose ambulante.  E não tenho a mesma opinião formada sobre tudo.  (Arnaldo Domínguez).
[6]    “Os sujeitos estão submetidos a uma organização coletiva dos plús de gozar... homogeneização. O mais notável é que esses seres instrumentalizados por esses objetos, estão sós com um gozo que se estabelece como um curto-circuito no laço social” - Collete Soler – A maldição sobre o sexo – Ed. Manantial.
[7]    Ao menos, assim no-lo transmite, dentro do que é possível de transmissão, Alejandro Viviani.
[8]    Talvez porque fosse o único jeito de encontrar um chão.
[9]    “O sonho está para o impossível do amor como o pesadelo está para o horror do ódio”  - Jean-Pierre Winter, “Os Errantes da Carne: estudos sobre a histeria masculina” - Ed. Companhia de Freud.
[10]  Winter, Jean-Pierre - Idem.
[11]  Um jovem analisante que saía às ruas disposto a “trepar com todos os homens” cada vez que transava com uma mulher, comprova esta tese da errância.
[12]  Ariano: A-rian = O nada!
[13]  Os cínicos mais modernos asseguram que o amor não é outra coisa que um transtorno hormonal. Peter Sloterdijk.
[14]  Aporte a este trabalho de meu amigo Hernán Siculer, a quem agradeço, desde já, pela leitura e considerações.
[15]  “A criação do reino da fantasia dentro da alma encontra seu cabal correspondente na instituição de 'parques naturais', de 'reservas', ali onde os reclames da agricultura, o comércio e a indústria ameaçam alterar velozmente a faz original da terra até torna-la irreconhecível” - Freud, conferência 23, 1916.
[16]  Contou-me a psicanalista Susana Palácios, minha amiga, que um garotinho de 10 anos a quem atende, disse: “Vamos se divertir”, ao que ela questionou: “Você não vai?” e soube depois, pela mãe do menino, que ele chegou contente em casa afirmando: “Aprendi com Susana que uma palavrinha tão pequena pode me deixar de fora do jogo: SE”
[17]  “A perversão é a essência do homem”; Lacan – O Sinthoma – 11 de maio de 1976.
[18]  Como o Maestro Ioham Sebastian Mastropiero, dos Les Luthiers.
[19]  Isto mostra o avesso de uma época de especulação metafísica demonstrada por Fausto, de Goethe, que é sustentada pela evidência moderna de que o mundo se move e que seu movimento vai para frente e para cima.
[20]  “Não se pode chamar o diabo pelo nome, a não ser que se conheça um conjuro contra ele. Nomeá-lo (seja por vontade de poder, seja por agressão) significa reconhecer a realidade e reconhece-la significa libera-la” -  É como liberar um pássaro de mau agouro da gaiola das loucas, digo eu, quando cito Peter Sloterdijk - “Crítica da Razão Cínica” -
[21]  Carneiro de Leão, Emmanuel - “O porvir de Nietzsche”
[22]  Heidegger; “O que é metafísica”
[23]  “Na angústia não é só o eu que é dissolvido, é também o Outro enquanto suporte identificatório” -  Piera Aulagnier, “A angústia e a identificação” - Seminário “A Identificação” - Lacan.


Comentários

  1. Obra de una viva dolorosa vigencia. Arnaldo Domínguez ausculta el alma de nuestra sociedad provisto de un escalpelo semejante al de Nietzche cuando se enfrentaba con el cáncer naciente de la sociedad occidental y efectuaba el diagnóstico respecto del malestar de la cultura, para dar con la soledad como un centro vital que habría de corroer todo lo que siguió después.

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